quinta-feira, 29 de abril de 2010

A DEPRESSÃO NA VISÃO ESPÍRITA


Dr. Wilson Ayub Lopes
Médico Cardiologista

A depressão pode ser conceituada como uma alteração do estado de humor, uma tristeza intensa, um abatimento profundo, com desinteresse pelas coisas. Tudo perde a graça, o mundo fica cinza, viver torna-se tarefa difícil, pesada, com idéias fixas e pessimistas.

Poderíamos considerá-la como uma emoção estragada. As emoções naturais devem ser passageiras, circularem normalmente, sem desequilibrar o ser. A tristeza, por exemplo, é uma emoção natural, que nos leva a entrar em contato conosco, à introspecção e à reflexão sobre nossas atitudes. Agora, uma vez estagnada, prolongada, acompanhada de sentimento de culpa, nos leva a depressão.

Podemos dividir a "depressão" em três formas, de acordo com o fator causal:

  • Depressão Reativa ou Neurose Depressiva: esta depende de um fator externo desencadeante, geralmente perdas ou frustrações, tais como separação, perda de um ente querido, etc.
  • Depressão Secundária a Doenças Orgânicas: acidente vascular cerebral ("Derrame"), tumor cerebral, doenças da tireóide, etc.
  • Depressão Endógena: por deficiência de neurotransmissores. Exemplos: depressão do velho, depressão familiar e psicose maníaco-depressiva.
Estima-se que a depressão incida em cerca de 14% da população, ou seja, temos no Brasil cerca de 21 milhões de deprimidos.

Ela afeta todo o ser, acarretando uma série de desequilíbrios orgânicos, sobretudo, comprometendo a qualidade de vida, tornando a criatura infeliz e com queda do seu rendimento pessoal.

André Luiz cita nas suas obras que os estados da mente são projetados sobre o corpo através dos bióforos que são unidades de força psicossomáticas, que se localizam nas mitocôndrias. A mente transmite seus estados felizes ou infelizes a todas as células do nosso organismo, através dos bióforos. Ela funciona ora como um sol irradiando calor e luz, equilibrando e harmonizando todas as células do nosso organismo, e ora como tempestades, gerando raios e faíscas destruidoras que desequilibram o ser.

Segundo Emmanuel, a depressão interfere na mitose (divisão) celular, contribuindo para o aparecimento do câncer e de outras doenças imunológicas, sobretudo a deficiência imunitária facilitando às infecções.

Na depressão existe uma perda de energia vital no organismo, num processo de desvitalização. O indivíduo perde energia por dois mecanismos principais:

  1. Perde sintonia com a Fonte Divina de Energia Vital: o indivíduo não se armando como deve, com sentimento de auto-estima em baixa, afasta de si mesmo, da sua natureza divina, elo de ligação com a fonte inesgotável do Amor Divino. Além do mais, o indivíduo ao se fechar em seus problemas e suas mágoas, cria um ambiente vibracional negativo, que dificulta o acesso da espiritualidade Maior em seu benefício.
  2. Gasto Energético Improdutivo: o indivíduo ao invés de utilizar o seu potencial energético para desenvolver potencialidades evolutivas, vivendo intensamente as experiências e os desafios que a vida lhe apresenta, desperdiça energia nos sentimentos de auto-compaixão, tristeza e lamentações. Sofre e não evolui.
Causas principais

A depressão está freqüentemente associada a dois sentimentos básicos: a tristeza e culpa degenerada em remorso.

Quando por algum motivo infringimos a lei natural, ao tomarmos consciência do erro cometido, temos dois caminhos a seguir:

  1. Erro > Consciência > Arrependimento > Tristeza > Reparação.
  2. Erro > Consciência > Culpa-remorso (idéia fixa) > Depressão.
O primeiro caminho é meio natural de nosso aperfeiçoamento. Uma vez tomando consciência de nossas imperfeições e erros cometidos, empreendemos o processo de regeneração através de lições reparadoras.

De outra maneira, se ao invés nos motivarmos a nos recuperarmos, nós nos abatermos, com sentimento de desvalia, de auto-punição, e permanecermos atrelados ao passado de erros, com idéias fixas e auto-obsessivas, nós estaremos caminhando para o estado de depressão, que é improdutivo no sentido de nossa evolução.

Outra condição que nos leva à depressão é citada pelo espírito de François de Geneve no Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V, Item 5 (A Melancolia), onde relata que uma das causas da tristeza que se apodera de nossos corações fazendo com que achemos a vida amarga é quando o Espírito aspira a liberdade e a felicidade da vida espiritual, mas, vendo-se preso ao corpo, se frustra, cai no desencorajamento e transmite para o corpo apatia e abatimento, se sentindo infeliz. Para François Geneve então, a causa inicial é esta ânsia frustrada de felicidade, liberdade almejada pelo espírito encarnado, acrescido das atribulações da vida com suas dificuldades de relacionamento interpessoal, intensificada pelas influências negativas de espíritos encarnados e desencarnados.

Outro fator que está determinando esta incidência alarmante de depressão nos nossos dias é o isolamento, a insegurança e o medo que estão acometendo as pessoas na sociedade contemporânea.

Absorvido pelos valores imperantes como o consumismo, a busca do prazer imediato, a competitividade, a necessidade de não perder, de ser o melhor, de não falhar, o homem está de afastando de si e de sua natureza. Adota então uma máscara (persona), que utiliza para representar um "papel" na sociedade. E, nesta vivência neurotizante, ele deixa de desenvolver sua potencialidades, não se abre, nem expõe suas emoções, pois estas demonstram que de fato ele é. Enclausurado, fechado nesta carapaça de orgulho e egoísmo, ele se isola e se sente sozinho. Solidão, não no sentido de estar só, mas de se sentir só. Mais do que se sentir só é a insatisfação da pessoa com a vida e consigo mesma.

O indivíduo nessa situação precisa se cercar de pessoas e de coisas para ficar bem, pois, desconhece que ele se basta pelo potencial divino que tem.

A solidão é conseqüência de sua insegurança, de sua imaturidade psicológica. Nos primeiros anos de vida, a criança enquanto frágil e insegura, é natural que tenha necessidade de que as pessoas vivam em função delas, dando-lhes atenção e proteção. É a fase do egocentrismo, predominantemente receptiva. Com o seu amadurecimento, começa a criar uma boa imagem de si, tornando-se mais seguro, e a partir de então, passa a se doar, a se envolver e a participar mais do mundo. O que acontece é que certas pessoas, por algum motivo, têm dificuldades neste processo de amadurecimento afetivo, mantendo-se essencialmente receptivas e não participativas, exigindo carinho, respeito e atenção, sem se preocuparem da mesma forma com os outros. Fazem-se de vítimas, pobre coitados, sem as responsabilizarem por si.

Conseguem o seu equilíbrio às custas das conquistas exteriores. A primeira frustração que se deparam, não toleram, pois expõe suas fraquezas e isto motiva um quadro de depressão.

Em alguns idiomas, doença e vazio têm a mesma tradução. A doença seria decorrente de um vazio de sentimentos que gera depressão e adoece o ser.

Um indivíduo quando perde a capacidade de se amar, quando a auto-estima está debilitada, passa a ter dificuldade de amar o semelhante, pois o sentimento de amor, de generosidade para com o próximo, é um sentir de dentro para fora. Este sentimento de amor ao próximo, nada mais é do que uma extensão do nosso amor, da nossa sintonia com o Deus interior que nós temos em nós. A pessoa que tem dificuldade nesta composição de amar a si e, por conseqüência, amar o próximo, deixa de receber o amor e a simpatia do outro, e não consegue entra em sintonia com a fonte sublime inesgotável do Amor Divino. Nós limitamos aquilo que recebemos de Deus, na medida do quanto doamos ao próximo. Quem ama muito, muito recebe. Quem pouco ama, pouco recebe. Esse afastamento de si, e por conseguinte de Deus, gera a tristeza, o vazio, a depressão e a doença.

Tratamento

A depressão é um sintoma que nos diz que não estamos nos amando como deveríamos.

O caminho para sairmos dela é preencher este vazio com a recuperação da auto-estima e do amor em todos os sentidos. Primeiro, procurando nos conhecer e nos analisar, com o intuito de nos descobrirmos, sem nos julgarmos, sem nos punirmos ou nos culparmos. E depois, nos aceitarmos como somos, com todas as nossas limitações, mas sabendo que temos toda potencialidade divina dentro de nós, esperando para desabrochar como sementes de luz. Isto nada mais é do que desenvolver a fé em si e no criador, sentimento este que transforma e que nos liga diretamente a Deus.

Uma pessoa consciente de sua riqueza interior passa a ter segurança e fé nas suas potencialidades infinitas, começando a gostar e acreditar em si, amando-se e a partir de então, sentindo necessidade de expandir este sentimento a tudo e todos. Começa assim a se despertar para os verdadeiros valores da vida espiritual, se transformando numa pessoa feliz e sorridente, pois onde existe seriedade, há algo de errado; a seriedade está ligada ao ser doente. Sorria e seja feliz amando e servindo sempre.

A terapia contra a depressão se baseia no amar e no servir, se envolvendo em trabalhos úteis e no serviço do bem. Seja no trabalho profissional, no trabalho do lazer, ou no trabalho de servir ao próximo, o indivíduo se ocupa, exercita o amor, e deixa de se envolver com as lamentações, pois a infelicidade faz seu ninho no escuro dos sentimentos de cada um. Dificilmente conheceremos um deprimido, entre aqueles que trabalham a serviço do bem.

Para doarmos este amor, não basta somente fazermos obras de caridade, temos que nos tornarmos caridosos; antes de fazermos o bem temos que ser bons. Darmos um pão, um agasalho, mais junto colocarmos uma boa dose de afeto e carinho. Ser acima de tudo generosos, que é a caridade com afeto. As pessoas estão com fome de amor, de calor humano, um ombro amigo, um abraço, um aconchego e uma palavra de carinho.

Às vezes, com um simples sorriso, um bom dia, um olhar afetuoso, nós estamos doando energia e transmitindo vida.

O homem alcançou um enorme progresso intelectual, satisfazendo suas necessidades materiais com os avanços tecnológicos. Porém, ainda se depara com enormes dificuldades na convivência fraterna com o seu semelhante. Estamos cada vez mais próximos um dos outros através dos meios de comunicação e, no entanto, mais afastados emocionalmente. Agora, o homem está sentindo a necessidade premente de desenvolver a afetividade, de se envolver, amar e sentir o seu semelhante.

Temos que ressuscitar e liberar a criança que está esquecida dentro de nós. Para resgatarmos esta criança que adormece em nós, é necessário que vejamos o mundo de forma positiva e otimista. A nossa criança interior, geralmente se encontra retraída e oprimida, porque a vida nos apresenta de forma desagradável; ainda não vivemos de forma natural, espontânea e isto gera ansiedade e sofrimento. Como a criança é movida pelo prazer, ela se recolhe e não se manifesta.

A criança não se julga, não se pune. Ela apenas vive o hoje, o agora, integrada perfeitamente a Deus e à natureza. "Deixai vir a mim as criancinhas porque o reino dos céus é de quem vos assemelham" - com estas palavras quis Jesus dizer que teremos que ser puros, autênticos, integrados com a nossa natureza divina, sem fugas ou máscaras, para alcançarmos a nossa evolução espiritual. Ter atitudes simples, como lidar com animais, brincar com crianças, atividades criativas como a pintura, tocar um instrumento, fazer pequenas tarefas domésticas, cozinhar, manter uma conversa amena, contar um caso, ver um bom filme, escutar uma música, cantar, sorrir, ouvir com atenção, olhar com ternura, tocar as pessoas, abraçar, fazer um elogio sincero, curtir a natureza, admirar o por do sol, etc. Estas são tarefas que muito lhe ajudará a reencontrar o equilíbrio e a harmonia interior.

Manter sempre o bom humor. Aquele que tem no ideal de servir uma meta de vida, será sempre uma pessoa feliz. Na vida o que mais importa é o amor e o bem querer das pessoas, viver suas emoções; não se deixar afetar por coisas pequenas. Muitas vezes nos deixamos abater por problemas, que se olharmos com olhos de Espíritos Eternos em passagem pela Terra, não valorizaríamos.

Substituir sentimentos de auto-piedade por vibrações em favor dos que sofrem. Se olharmos com atenção e interesse ao nosso redor, veremos que existem pessoas com problemas muito piores, que o nosso a pedir socorro.

Procurar praticar atividades físicas regulares, como a caminhada, um esporte, um lazer. A mente parada começa a criar pensamentos negativos, que se assemelham a lixos amontoados dentro de casa. Com estas atividades, você estará desviando sua mente destes pensamentos deletérios.

Tornar-se empreendedor, dinâmico, criando idéias novas e construtivas em benefício do semelhante, com motivação para implementá-las, junto ao grupo ou a comunidade que pertence. Não fique estagnado esperando que a coisas aconteçam em seu favor. Aja em favor do próximo e não se surpreenda se você for o mais beneficiado.

Leituras edificantes, uma conversa com um amigo, um terapeuta ou um orientador espiritual, ajuda você a ver o problema por um outro ângulo.

A oração é um recurso indispensável no processo de recuperação. Através dela estabelecemos sintonia com a Espiritualidade Maior, facilitando o caminho para que nos inspirem e revigorem nossas energias.

Não nascemos para sofrer. A vontade de Deus é a nossa alegria e a nossa felicidade. Se sofrermos é por nossa causa. Os nossos problemas e nossas dificuldades devem ser interpretadas como instrumentos para nossa evolução.

Nunca devemos nos deprimir ou nos revoltar contra eles. O melhor aprendizado, é aquele que tiramos de nossa própria vida.

Vocábulo "crise" em algumas línguas pode ter dois significados: a oportunidade ou perigo. Oportunidade de crescimento ou perigo de queda.

O que importa é sabermos que os problemas, que deparamos na vida só surgem quando já temos condições de solucioná-los. Como disse o Mestre Jesus: "O Pai não coloca fardos pesados em ombros fracos". Deste modo, ficamos mais fortes ao saber que temos todas as condições interiores, para enfrentar as dificuldades que a vida nos apresenta.

Ter consciência, que acima de tudo, tem um Deus maior a zelar por nós e que nunca nos abandona. Confiar em Jesus e seguir seu exemplo de vida: "Eu sou o Bom Pastor; tende bom ânimo; não se turbe o vosso coração; vinde a mim vós que andais fatigados, cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei".

Suicídio

Uma das causas de suicídio é o indivíduo se achar impotente e fraco para enfrentar suas dificuldades. Ele se julga inferior, incapaz, vítima da sociedade, desprezando a força que tem. Aí os problemas passam uma dimensão muito maior, e ele se vê impossibilitado para resolvê-los.

Segundo esta linha de raciocínio, não existe pessoa "fraca" a ponto de não suportar um problema, que ele julga, de certa forma, demasiado para si. O que de fato ocorre é que esta criatura não teve força de mobilizar a sua vontade própria para enfrentar aquele desafio. Preferiu fugir, acreditando poder se libertar daquela situação. Só que não irá conseguir, pois a morte é apenas uma mudança de estado. A pessoa continua sendo a mesma, com os mesmos sentimentos e os mesmos problemas.

O mais grave é que o suicida acarreta danos ao seu perispírito. Quando voltar a reencarnar, além de enfrentar os velhos problemas ainda não solucionados, terá acrescido a necessidade de reajustar a sua lesão perispiritual.

Devemos ter a vontade firme de eliminar o mal invasivo da depressão, e vários caminhos podem ser percorridos: tratamento medicamentoso (às vezes necessário), trabalho espiritual incluindo a desobsessão, água fluidificada, passes magnéticos, trabalho beneficente, mudança de atitude mental, etc.

Após iniciado o processo de recuperação é necessário que nos tornemos vigilantes, pois é muito comum a melhora cíclica, com altos e baixos. "Vigiai e orai". É importante aproveitar os períodos de melhora para empreender trabalhos edificantes no bem, consolidando as conquistas efetuadas.

Uma coisa fundamental que devemos ter consciência é que ninguém e nada tem a capacidade de nos fazer infelizes se não quisermos. O centro de gravidade do nosso equilíbrio psico-emocional tem que estar localizado dentro de nós e não nas coisas exteriores.

Não se deve condicionar a sua felicidade a algo que aconteça ou esperar que alguém o faça feliz. Estando com o seu centro de equilíbrio estável, se amando e se aceitando como é, você passa a viver o agora e aceitar as pessoas e as circunstâncias como elas são. Além disto, passamos a ver as qualidades do outro e não os seus defeitos, pois, geralmente vemos o outro como um reflexo do nosso estado íntimo.

Não aceite o convite para sofrer, que venha de outra pessoa ou de você para você mesmo. Proteja-se. Emita pensamentos bons.

Nada pode abalar aquele que alcançou o amor, a paz, a harmonia interior e sobretudo a Fé em Deus.

Bibliografia

Kardec, Allan - O Evangelho Segundo o Espiritismo - 2ª edição - FEB - Capítulo V, Item 25.
Franco, Divaldo Pereira - O Homem Integral - 3ª edição - Livraria Espírita Alvorada.
Xavier, Francisco Cândido - Missionários da Luz - FEB - 21ª edição.
Revista Espírita Allan Kardec - Ano X - n. 37.
Xavier, Francisco Cândido - O Consolador - FEB - 13ª edição.
Silva, Marco Aurélio (Dr) - Editora Best.

Fonte:
Boletim Informativo da Associação Médico-Espírita do Estado do Espírito Santo. Outubro de 1998. Ano 1. Número 1.


endereço: http://www.ameees.org.br/p070004.htm

imagem: logon.prozis.pt


terça-feira, 27 de abril de 2010

O ENIGMA DA CONSCIÊNCIA


Prof Dr. Nubor Orlando Facure

A Teoria da “evolução das espécies” de Charles Darwin provocou um dos maiores choques culturais da humanidade e suas conseqüências ainda estão longe de se esgotarem. Alem dos aspectos biológicos com que foi inicialmente exposta pelo seu criador podemos percebê-la em diversos outros campos onde se manifesta a vida. Não seria exagero questionarmos se a evolução poderia ser reconhecida na “gênese das idéias”, capacidade que da ao homem de hoje a sua supremacia na natureza. Nesse caso, poderíamos questionar se a “evolução das idéias” ocorreu dentro de determinados princípios, e se teria sofrido uma seleção adaptativa como a que ocorreu na diferenciação anatômica das espécies.

Quando o famoso psicólogo suíço, Jean Piaget, estudou a inteligência, ele nos revelou as fases que acompanham seu desenvolvimento na criança. Sabe-se que um chipanzé adulto não ultrapassa a etapa sensório-motora que corresponde a uma criança de três anos, mesmo assim, temos que reconhecer que o seu repertório comportamental é muito vasto, nos permitindo conjeturar que eles tenham “idéias” com uma gama muito variada de pensamentos.

Podemos reconhecer, facilmente, as fases e os diferentes “níveis hierárquicos” na construção das idéias que nos dias de hoje atestam nossa racionalidade. Toda “hierarquia” pressupõe níveis de maior ou menor organização e possibilita a divisão em categorias que variam na sua complexidade. Convém reconhecer as “idéias” como produtos de desejos e intenções construídas por pensamentos. A complexidade, maior ou menor que se revela nas idéias, é que nos permite ver nelas, uma manifesta hierarquia.

Nossa sugestão é propor uma leitura por extenso do percurso que o “princípio inteligente” fez, animando todos os seres vivos, desde suas expressões mais primitivas até seu mais alto nível na espécie humana. Poderíamos ver aqui, mesmo que numa identificação arbitrária, as diversas fases que percorreram os seres vivos para compor todo seu patrimônio ideatório. A idéia de sobrevivência, por exemplo, deve ter percorrido toda esta trajetória, e quase tudo que existe no nosso corpo pode ser visto como recursos que desenvolvemos para garantir esta sobrevivência. O altruísmo, que apareceu mais tarde, iniciou-se como estratégia para garantir a sobrevivência. O que antes era de interesse individual, passou, depois, a ser de interesse grupal.

Pode parecer um contra-senso falarmos de “idéias”, assim como, causaria desconfiança, apontarmos qualquer expressão de atividade psíquica nas formas mais primitivas de vida. Não podemos negar, porém, que a ligação biológica entre esses seres e nós, exige, de alguma forma, que, tudo que se denomina para os humanos de “psiquismo” (como sinônimo de atividade mental), tem um vínculo, uma procedência, uma preexistência, uma relação direta com o comportamento destes seres primitivos. É a identificação deste percurso contínuo da atividade “mental” que queremos acompanhar. É claro que pode nos faltar terminologia mais adequada para explicitarmos com mais propriedade o que “pensam” estes seres primitivos, mas não nos é permitido deixar de identificar naquilo que eles revelam em termos de respostas químicas, de reações reflexas e de comportamentos instintivos, com tudo o que nós produzimos no colorido de atitudes que chamamos de humanas.

È bom lembrarmos que em termos fisiológicos, a ação que produz um determinado comportamento, é resultante de um pensamento que dirige esta ação. Isto é visível quando corro para me proteger da chuva. O mesmo fenômeno é notado no chimpanzé que corre de medo de uma cobra. Em ambos os casos ocorrem comportamentos de fuga com um conteúdo mental. No caso do chimpanzé, costuma-se rotulá-lo de comportamento instintivo, como se isso fosse possível de acontecer sem a construção de um repertório mental, constituído de pensamentos de medo, diante de um perigo eminente. Sua distinção em relação ao pensamento humano pode revelar quantidades e qualidades diferentes, mas não podemos excluir que existam pensamentos e suas idéias correspondentes, tanto para o homem como para o chimpanzé.

A construção da mente

A definição de mente e sua interação com o cérebro são dilemas ainda não resolvidos pela Ciência. De qualquer forma, o homem compreende sua mente através das idéias que ela expressa. Para René Descartes, nós já nascemos com um conteúdo de idéias inatas e Leibniz (Gottfried W.Leibniz 1646-1716) sugere a existência de mônadas na estruturação da mente. Para outros o conteúdo mental é produzido pelos estímulos que atravessam os nossos sentidos.

A discussão filosófica interpreta as idéias como sendo todo nosso conteúdo mental. Elas podem ser expressas em diversas formas de linguagem, seja num texto falado ou escrito ou numa composição artística qualquer. Em todas suas manifestações, o pensamento será sempre o veículo que expressa estas idéias.

Não escapa do raciocínio de qualquer um de nós que as idéias podem ter graus de maior ou menor complexidade. Locke (John Locke,1632-1704), por exemplo, considera que as idéias podem ser simples ou complexas e, elas seriam resultado das nossas sensações ou das nossas reflexões.

David Hume (1711-1776) diz que o pensar é pensar por meio de imagens, é imaginar e, que toda experiência, seja na sensação ou na imaginação, é chamada de percepção. Para Hume, as percepções são constituídas de idéias e impressões. As impressões podem se originar da experiência sensorial ou de atividades como a memória.

Diz ainda Hume, que a impressão pode não ter a mesma nitidez das idéias produzidas pela experiência sensorial. Ela precede sempre as idéias produzidas pelas sensações e, o que não pode ser imaginado não pode ser experimentado.

Definindo a mente, Hume a considera uma espécie de teatro, onde várias percepções fazem a sua apresentação sucessivamente.

Diz Hume que não temos a menor noção do lugar onde essas cenas são representadas, nem dos materiais que as compõem. Nossa mente seria apenas uma sucessão de percepções. A humanidade seria um acervo ou uma coleção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras, numa rapidez inconcebível e se acham num estado de perpétuo fluxo ou movimento.

A noção de Eu, para Hume é impossível. É um disfarce para confundir uma sucessão de idéias, com a idéia de identidade que formamos de algo que permanece igual durante um período de tempo.

A idéia de que a mente interfere na percepção das coisas não é nova. Spinoza (Baruch Spinoza - 1632-1677), considerava que “está na natureza da mente perceber as coisas sob um certo ponto de vista atemporal”. Para Leibniz, é a disposição das mônadas, cada qual com uma disposição diferente, é que dá a aparência à realidade. Cada objeto consiste de uma colônia de mônadas e o corpo humano tem uma mônada dominante, privilegiada, que mais especificamente se denomina Alma humana.

O filósofo inglês, Jonh Locke, no “Ensaio sobre o entendimento humano (1690)”, revive a afirmação de Aristóteles, considerando a mente como uma folha de papel em branco cujo conteúdo seria preenchidos pela experiência. Locke chama este conteúdo mental, de idéias. As “idéias de sensação”, que seriam originadas da observação do mundo exterior através dos nossos sentidos e as “idéias de reflexão” que surgiriam quando a mente observa a si mesmo, é quando a mente analisa por si mesmo o seu conteúdo. Dizia Locke, que tudo o que nós conhecemos são idéias, e estas, por sua vez, retratam ou representam o mundo.

George Berkeley (1685-1753), considerava que o existir de alguma coisa é o mesmo que ser percebido. Isso significa dizer que os objetos que se percebe estão na própria mente. Nossa percepção visual, por exemplo, não são de coisas externas, mas simplesmente idéias que estão na mente. No seu “Princípio do conhecimento humano” de 1710, Berkeley, especifica sua fórmula básica de que “ser é ser percebido”. O que na verdade conhecemos e comentamos são, conteúdos mentais. Isso fica claro, por exemplo, quando ouvimos alguém. O que entendemos é o “conteúdo mental” do que ele diz, mais do que uma série de sons verbais isolados uns dos outros e depois encadeados como as contas de um colar.

Georg Hegel (1770-1831) partia da história para construir seus princípios da dialética. Seu método se aplicava não só como um instrumento da teoria do conhecimento, mas diretamente como uma descrição do mundo. Todo passo dialético percorre três etapas. A uma declaração inicial se opõe uma contra declaração, e finalmente as duas se combinam numa espécie de acordo. Penso eu que o oxigênio é vital para nossa sobrevivência, mas, num incêndio, o oxigênio pode agravar o fogo e nos comprometer a vida. Concluímos que conforme as circunstâncias o oxigênio pode ser indispensável ou perigoso para nossas vidas. No discurso inicial, segundo a dialética de Hegel, podem se opor proposições contraditórias, mas a conclusão deve exigir um arranjo composto. A contradição pode existir no discurso inicial, mas no mundo cotidiano dos fatos não existe a contradição.

Hegel foi autor do “Fenomenologia do Espírito” publicado em 1806. Ele mostra possuir considerável percepção da mente humana. Na psicologia do desenvolvimento intelectual, a dialética é, até certo ponto, um método perspicaz de observação e aprendizado. Percebe-se que com freqüência a mente progride segundo o padrão dialético seguindo a seqüência da tese, da antítese e a conclusão da síntese.

A Filosofia para Hegel é definida como o estudo da sua própria história. Foi a explicação detalhada dos acontecimentos que fez Hegel publicar a “Filosofia da História” de onde retirou sua dialética.

Creio eu que os acontecimentos e o significado de cada evento no decorrer do tempo, pode nos fazer compreender o sentido das coisas. Nesse aspecto a evolução da mente pode ser revelada numa abordagem dialética.

A Hierarquia das idéias

A estrutura anátomo-fisiológica do cérebro humano passou por todo o processo evolutivo a que se submeteram os organismos das várias espécies que a natureza produziu. Não é de estanhar que possamos surpreender no passado as origens da complexidade da mente humana e as idéias que a permite se expressar.

Por simplificação arbitrária, podemos fazer uma leitura didática das idéias considerando os níveis de suas complexidades. Seria uma proposta de se ver uma “hierarquia” na construção e evolução das idéias, como se estivéssemos identificando os programas mais simples que serviram de base para construir os programas mais sofisticados que organizam as nossas mente.

Analisamos seis fases:

1 - Fase química ou celular.

Vírus e bactérias.

Os primeiros organismos vivos iniciaram uma troca de informações químicas com o meio exterior. É a fase onde se aprimora o contato que patrocina a aproximação ou a fuga, mediadas exclusivamente por reações químicas. Um animal primitivo, constituído de uma única célula tem capacidade de detectar nas suas vizinhanças a presença de substâncias nutritivas e de realizar movimentos em direção a essas substâncias que ele incorpora em sua estrutura. Uma ameba, constituída por uma única célula, pode reagir, fugindo de uma picada com uma agulha ou absorver um fragmento químico que a alimenta. Essa mesma atitude continua a existir numa célula do nosso estômago ou de uma colônia de fungos.

No corpo humano, existem 250 tipos diferentes de células e é através da linguagem química que cada uma delas se comunica, entre si e o meio exterior. Nossa atividade mental é indispensável para essa orquestração, embora nossa consciência participe muito pouco dessa atividade, vindo a si dar conta dela, nas ocasiões em que as doenças rompem a homeostase e a harmonia dos órgãos.

É extraordinário como o ovário da mulher é capaz de liberar mensalmente uma célula reprodutora, escolhida entre inúmeras outras. Não se sabe por qual mecanismo é feita essa escolha, e por mais simples que possa parecer, em cada mês é um ovário diferente que fornece o óvulo.

No quadro das redes neurais a complexidade da comunicação química e elétrica é tão extraordinária que permite aos materialistas pensarem que é ali que nascem todas as nossas idéias.

O perfume de uma flor que afeta a química das nossas células olfativas, é capaz de nos provocar lembranças há muito tempo sepultadas nas nossas memórias da adolescência.

A atuação de cocaína nos neurônios, é tremendamente devastadora para a personalidade do indivíduo viciado nesta droga.

Um pensamento de cólera pode desencadear a produção de substâncias pelas nossas glândulas, com efeito devastador para nosso organismo.

A hipófise tem mais ou menos o tamanho de uma ervilha e, mesmo assim é capaz de orquestrar uma dezena de hormônios que regulam glândulas esparramadas pelo nosso organismo.

2 - Fase reflexa.

Animais invertebrados.

Após a fase química e no momento em que uma célula reconhece a presença de outras células vizinhas, construiu-se uma organização que passou a distribuir tarefas. Foi criado pela “idéia” do grupo celular, um sistema de estímulo-resposta, caracterizado, tipicamente, pela expressão de um determinado comportamento reativo. Essa reação pode ser tão simples como um movimento corporal ou uma divisão celular. Outras vezes são complexas expressando fuga ou aproximação. Uma ameba, constituída por uma única célula, pode reagir, fugindo de uma picada com uma agulha.

Nesse nível não há competência suficiente para produzir um aprendizado, mas a transmissão genética permite às espécies reproduzirem respostas repetidas e organizarem os instintos.Uma lesma não é capaz de aprender a sair de um labirinto, mas reage diante de uma ameaça, expulsando um jato de tinta que confunde o predador.

A falta de flexibilidade das idéias nesta fase pode ser danosa e comprometer a sobrevivência do animal. Uma mariposa confunde a luz dos postes com a claridade da lua, e morre queimada pelo calor da lâmpada. É curioso notar, o quanto essa falta de flexibilidade tem perturbado a vida de todas as criaturas.As tartarugas recém nascidas, por exemplo, confundem as luzes da cidade com as estrelas vespertinas, e morrem esmagadas no asfalto. É notória a competência das mulheres em lidarem com a flexibilidade das idéias a seu favor, superando com isso, o mito da inteligência masculina.

O processo fundamental nesta fase primitiva do “princípio inteligente” é sua interação com o meio. Sua fisiologia está baseada na Lei de “ação e reação” onde para um determinado efeito existe uma única causa que a observação ou a experimentação pode revelar.

Em termos neurológicos esta fase caminha para o desenvolvimento do arco reflexo e dos mecanismos automáticos ligados aos núcleos da base. Estas estruturas estão intimamente ligadas à sobrevivência. Organizam-se colônias multicelulares e a reprodução é por divisão celular sem qualquer divisão sexual A partir daqui serão desenvolvidos objetivos mais sofisticados para aproveitar melhor os mecanismos de aproximação ou fuga. Uma libélula é capaz de responder a estímulos químicos de uma parceira sexual situada há quilômetros de distância.

Diversos órgãos do nosso corpo estão em constante atividade dirigida por um sistema nervoso totalmente autônomo. Este sistema funciona sob controle de atividade química de neurotransmissores que os reflexos nervosos ao nível dessas vísceras liberam. A “hidra dos aquários” é um dos animais que possui o sistema nervoso mais simples que conhecemos e convém destacar que com a criação das primeiras redes neurais, teve início o que podemos chamar de linguagem interna.

3 - Nível das proto-idéias.

Peixes, répteis, anfíbios e aves.

Têm início os automatismos. Desenvolve-se aqui a organização de sociedades, formação de agrupamentos e construção de abrigos. Um animal nessa fase já tem “consciência” da existência do outro. Na constituição das famílias começam a aparecer “idéias” de proteção dos descendentes e acúmulo de alimentos para garantir a escassez. Os pais têm compromissos na alimentação das suas crias. As relações com o meio exterior ficam mais complexas. Aparecem as noções de esquema corporal vital para o animal aprender a associar as suas dimensões em relação ao ambiente, ao tamanho dos seus rivais e o quanto pode estender suas patas para alcançar as suas presas. Desenvolvem-se a orientação no tempo e no espaço indispensáveis aos ritmos biológicos circadianos. Aves e peixes fazem jornadas quilométricas mapeando e depois memorizando as sinalizações que encontram na trajetória percorrida durante as migrações. Aparece um verdadeiro aprendizado no qual o conhecimento adquirido é transmitido de uma geração para outra. Isso pode ser visto na construção de tocas, de ninhos ou mesmo nos gestos que as aves usam para voar.

4 - Nível integrativo ou associativo.

Mamíferos e primatas.

Aqui a aquisição de conhecimento se completa com a possibilidade de ser este conhecimento transmitido às gerações futuras.Varias funções psíquicas são agregadas para a sua estruturação. Compõe-se, por exemplo, da fixação da atenção, das respostas emocionais e da memorização. Elas se caracterizam pela interação com o ambiente e pela formação do conhecimento.

O animal consegue desenvolver comportamento comprovadamente inteligente. O macaco se utiliza instrumentos que lhe facilitam o acesso a uma fruta que os braços se mostram curtos para alcançar. Comportamentos altruísticos facilitam a sobrevivência do grupo.

5 - Nível de aquisição da consciência do Eu.

Humanos

Quando falamos de consciência do Eu, temos a impressão de que esse Eu parece ser alguém que está sempre conosco, exatamente onde estamos e dentro de nós. A minha sombra não é o meu Eu, nem o é as imagens que vejo nas minhas memórias. Ali estão apenas as minhas lembranças .

É extensa a literatura que descreve as características que diferenciam o comportamento do homem em relação aos outros animais. Diz-se que o Homem é o único animal que perdoa. Só ele é capaz de sorrir e de dar a vida para salvar seu filho. O Homem é o único animal cujos medos são capazes de criar superstições.

A mente humana incorporou todos processos de linguagem que a evolução do nosso organismo nos possibilitou acumular. Nossas “idéias” passaram a dar um significado a cada objeto. Esse significado passou a ser reconhecido por símbolos. O pensamento começou a se expressar simbolicamente por palavras construindo uma linguagem e a partir daí a humanidade construiu sua cultura.

A aquisição da linguagem falada foi um processo que hoje está tão arraigado em nossa mente, que nos parece ser impossível mentalizar qualquer idéia sem o uso das palavras. Todos nós, porém, nos comunicamos, tanto interna como externamente, com diversas outras formas de linguagem. Nossos medos e nossas crenças, comumente, não usam palavras para se manifestarem em nós. As expressões corporais são umas das mais eficientes formas de comunicação que também não se serve de palavras. Qualquer artista de teatro sabe que nosso corpo fala pelos gestos. A linguagem corporal é tremendamente mais rica e eficiente que a linguagem verbal. As palavras nunca conseguem expressar toda força de uma grande emoção enunciada pelos gestos

A consciência dos nossos atos corre em paralelo com uma série de gestos que podemos realizar inconscientemente. Já discorri sobre o que chamei de inconsciente neurológico dando exemplos que ilustram esta atividade. Diversas funções cerebrais estão intimamente ligadas a consciência. É fácil percebermos que o nosso nível de consciência está ligado ao esforço que imprimimos à atenção e a qualidade da consciência depende do material contido nas nossas memórias.

Nessa fase nossa consciência é limitada pelos recursos que o cérebro pode lhe oferecer. Em raras situações o desdobramento da consciência pode ser registrado no cérebro e nessas situações tomamos contato direto com as informações procedentes de outras dimensões e que ficaram impressas nos circuitos da memória física.

A espiritualidade é um atributo de nossa personalidade. Ela se desenvolveu no curso da evolução a partir de idéias primitivas de temores diante das ameaças que as forças da Natureza parecia nos ameaçar. Depois aprendemos a estabelecer as trocas com a divindade.

6 - Nível transcendente ou de espiritualização.

Místicos e missionários

Compreende o período da expansão da consciência. O neurologista está habituado a analisar os níveis de consciência nos seu sentido de maior ou menor profundidade. Esses níveis variam desde o estado de alerta, a sonolência, o torpor e o coma, quando então a consciência está abolida em graus de maior ou menor profundidade. A visão neuropsicológica moderna nos permite ver as alterações da consciência em expressões de maior ou menor amplitude. A expansão da consciência nos permite acessar, voluntária ou involuntariamente, os chamados “estados alterados da consciência”, com a possibilidade de transitar por informações de outras dimensões.

No nosso atual estágio evolutivo, o que compreendemos destes “outros planos da vida”, ainda são “idéias” elaboradas por construções fragmentárias. Quase sempre sem tradução completa nas expressões comuns da linguagem humana. Elas podem ser aceitas, transmitidas, mas não são compreendidas em toda sua extensão. É preciso ver nelas o subentendido que o aparente não revela. Expressam conceitos como: Deus, a criação, a eternidade e o infinito.Caracterizam-se por serem adquiridas como uma “revelação”. Podem ser interpretadas como sendo uma “vivência psíquica”. Uma das suas características é a sua generalidade. Grandes místicos do passado conseguiram expressá-las nos textos dos seus pensamentos memoráveis. Ao recordar algumas destas idéias podemos perceber a harmonia com que combinam simplicidade com complexidade: “O tudo está em tudo”. “Tudo é movimento”. “O cosmo está no homem”. “O não visto é o visível próximo”.

Aqui se descobre a complexidade do mundo, a extensão das experiências que nossas mentes já acumulam. E, tanto efeito como causa, devem ser vistos no plural.

Uma visão psicológica

As idéias têm a propriedade de revelar a atividade mental que estamos desenvolvendo. Isso não significa que elas sejam sempre expressas na linguagem falada que estamos habituados a expressar. Um gesto ou a expressão de um olhar nos mostra que o corpo fala, e às vezes fala mais que as palavras.

Penso que o conteúdo da nossa mente não é preenchido apenas por idéias, conforme afirmam alguns filósofos. O que torna muito mais complexa as possibilidades de nos expressarmos. Todos nós sabemos, que o conteúdo do inconsciente, é muito rico de imagens que as idéias mantém por muito tempo desordenadas. Conhecemos a dificuldade em traduzirmos este texto escondido no inconsciente. Muitas doenças servem de linguagem traumática para expressar o que temos ali dentro.

À medida que vamos estabelecendo idéias bem definidas, vamos acumulando um conhecimento que gradativamente constrói a nossa cultura. Outras idéias são aceitas de modo dogmático estabelecendo as crenças e criando os mitos. As crenças podem se adquirir a partir de uma experiência subjetiva, difícil de ser transmitida para os outros.

No diálogo interior que fazemos com a nossa própria consciência estamos habituados a construir desejos e intenções que podem se revelar no ambiente que nos cerca através de palavras ou de gestos. Entendo a consciência como a “propriedade” que nos permite perceber a realidade interna e externa.

No que se refere ao mundo exterior, é sempre mais fácil construirmos idéias que descrevam o que percebemos a respeito dele. É uma tarefa mais leve identificarmos e descrevermos os objetos situados fora de nós. Quanto ao nosso mundo interior as idéias são insuficientes para descreve-lo. Nossas impressões e reflexões são sempre mais fortes do que os pensamentos que elaboramos sobre elas. Estamos habituados a traduzir nossos pensamentos em palavras, e as emoções que nos afetam, podem ser de tal magnitude, que nos faltem palavras para descreve-las. Outras vezes, nossa surpresa é tão grande que nos faltam idéias para interpretar os fatos que nos abalam.

Acreditamos que nossa consciência é preenchida de pensamentos e idéias incessantes, parecendo-nos a todos que é impossível pararmos de pensar. Os místicos, habituados a se concentrarem em meditações profundas, descrevem a consciência como um fluxo incessante de energia e não necessariamente de idéias. Nesse estágio, a consciência se apropria da essência das coisas e atinge outras realidades.

No processo de aquisição das idéias e da experiência que a evolução sedimentou, podemos perceber que a mente humana é herdeira, de todas as formas de conhecimento que cada célula, cada agrupamento celular e cada organismo de todas as espécies que a evolução nos permitiu transitar, conduzindo, o “princípio inteligente”. É perfeitamente possível identificarmos, em expressões do comportamento humano, toda esta riqueza de idéias que a vida, expressa em tão grande diversidade biológica, consegui fixar em nossa mente.

A atividade celular em qualquer parte do nosso corpo ainda obedece à mesma química das células dos primeiros animais que nos antecederam. Os reflexos primitivos permanecem em total independência na sinfonia dos nossos órgãos internos. Os instintos e automatismos de uma abelha que constrói seus favos ou de uma libélula que localiza sua fêmea permanecem vivos no homem e na mulher que constroem seus sonhos. Quase todos nós já vivemos a experiência de usar um reflexo de fuga para dar um salto antes que alguém nos atropele. O instinto de sobrevivência nos faz agasalharmos para não sermos surpreendidos pelo frio. Muitas vezes caminhamos automaticamente por ruas que já conhecemos sem precisarmos nos dar conta dos obstáculos que ela contém. É instintiva a necessidade de correr quando um animal nos ameaça ou quando o cheiro de fumaça é alertado pelo grito de que há fogo por perto. Com esses exemplos estamos ressaltando que a química celular, os reflexos, os automatismos, o comportamentos instintivos adquiridos nos cenários da vida, permanecem convivendo conosco em parceria com a consciência, permitindo que através dela, toda nossa atividade seja comprometida com nossa responsabilidade.

Uma olhada na psicopatologia

A doença mental tem sido focalizada no decorrer dos tempos a partir de variadas interpretações. Não pretendemos nos deter neste histórico deixando apenas registrado que, na atualidade, ainda prevalece uma visão organicista e outra psicodinâmica nos fundamentos da psicopatologia.

Qualquer que seja nossa abordagem permanecerá no palco das manifestações dos distúrbios mentais uma perturbação no contexto das idéias que cada indivíduo revela nos seus desvios mentais.

Como nos parece que as idéias foram construídas a partir de um processo evolutivo acrescentando níveis de aquisições hierarquizadas, creio que poderíamos dar uma olhada no discurso das doenças mentais a partir da idéias que revelam o quadro clínico destas manifestações. Nossa proposta é apenas um ensaio despretensioso.

No caso do autista, podemos enxergá-lo fixado em um nível de reação extremamente limitada que não lhe permite interagir adequadamente com o meio exterior. Sua capacidade de gerar respostas aos estímulos exteriores está fortemente comprometida. Sua vida se limita a reflexos simples sem os componentes de associação entre os diversos módulos de atividade cerebral

No transtorno obsessivo compulsivo as atitudes estão fixadas em automatismos primários cuja repetição é impositiva para o paciente.

Na esquizofrenia ocorre uma regressão violenta na capacidade de construir idéias coerentes com a realidade tanto do meio externo quanto interno. O paciente tem uma aparência de constante sensação de hostilidade. Suas capacidades parecem se limitar a reações de fuga, tal qual um animal onde as “idéias” se limitam à atividade celular.Os estímulos exteriores não têm competência para gerar um padrão de resposta integrada.

A Hierarquia das idéias na Formação da Consciência

Diversos fatores contribuíram para que o estudo da consciência voltasse a despertar interesse da Ciência. Este estímulo se iniciou com a “Década do Cérebro” e o estudo das funções cerebrais através das imagens com a Tomografia de Pósitrons e a Ressonância funcional.

O neurologista Antônio Damásio e o físico Francis Crick são dois exemplos atuais de estudiosos que se propuseram a esclarecer o “enigma da consciência”. Em ambos persiste a visão materialista que reconhece no cérebro e no arranjo dos seus neurônios a capacidade de produzir a mente e estabelecer as condições que constrói a consciência. Os elementos envolvidos são outros, mas é o mesmo conceito de que se serve Thomas Hobbes (1588-1679), quando publicou o Leviatã (1651), afirmando que a realidade interna se resume em movimento e que nossos pensamentos e nossas paixões são efeitos do movimento da matéria.

No modelo materialista, utilizado pelas escolas neurológicas da atualidade, temos de lidar com redes de neurônios e tentar conhecer o mínimo de estrutura cerebral que é exigida para permitir a determinado animal permanecer consciente. Esta resposta não é difícil quando estivermos procurando apenas o que a consciência representa em termos de estarmos alerta, em contacto com o meio exterior. Teremos muito mais dificuldade quando discutirmos a extensão toda da consciência, o significado do “self”, o grau de apreensão que podemos fazer de uma determinada situação ou mesmo do ambiente que afeta a nossa consciência.

Num sistema organizado e de alta complexidade como o cérebro, é perfeitamente possível estabelecer os fundamentos neurofisiológicos para uma expressão limitada da consciência humana.

Para os que aceitam o paradigma espiritualista, sabemos que nossa Alma, devido a suas múltiplas existências, tem um conteúdo de conhecimento muito maior do que o que o cérebro físico possa revelar. É exatamente esta limitação apresentada pelo cérebro que nos impede de identificar uma lei abrangente, capaz de apreender toda fenomenologia da consciência.

Ao invés de se tentar equacionar o “enigma da consciência” pela estrutura das redes neurais e seus sistemas de organização, estamos apresentando uma via de acesso à consciência, pela elaboração e hierarquização das idéias. Ao estabelecermos um fundamento hierárquico para suas expressões, podemos questionar quais conteúdos e significados das idéias que seriam compatíveis com o aparecimento da consciência. Dessa forma, quando aumentar nosso conhecimento sobre os diversos aspectos da consciência, os fundamentos serão sempre os mesmos, irão variar apenas o significado das idéias necessárias para explicar determinada apresentação da consciência. Para estarmos alertas e perceptivos em relação ao ambiente, precisamos de um determinado padrão ideatório e para estarmos consciente do Eu, nos é exigido um outro determinado padrão de idéias. Para a expansão da consciência a outros planos da vida, são exigidos os padrões transcendentes de idéias.Os ganhos anatômicos do cérebro foram adquiridos, presumivelmente, pelo desenvolvimento de uma crescente constelação de idéias que a evolução estimulou nos desafios da vida.

A importância das idéias se revela na percepção que temos da realidade, bem como, nas ações que executamos acreditando serem procedentes de nossa vontade. Ambas, nada mais são que impressões do imaginário que a evolução nos permitiu construir na consciência.

Bibliografia

Damásio, A – O Mistério da Consciência; do corpo e das emoções ao

conhecimento de si. São Paulo – Companhia das Letras –2000

Del Nero, H.S. – O Sítio da Mente – São Paulo – Collegium Cognitio – 1997

Facure.N.O. – O cérebro e a Mente –Uma conexão espiritual – São Paulo - FE.Editora -2001

Searle, J.R. – A Redescoberta da Mente – São Paulo – Martins Fontes – 1997

Pinker, S. – Como a Mente Funciona – São Paulo – Companhia da Letras – 1998

Russel, B – História do Pensamento Ocidental – Rio de Janeiro – Ediouro - 2001

Luiz, A / Xavier, F.C. – Evolução em dois mundos – Brasília – FEB-10 ed. 1987

Fonte: Site do Dr. Nubor Orlando Facure em 04/09/2005 - www.geocities.com/nubor_facure



endereço: http://www.terraespiritual.locaweb.com.br/espiritismo/artigo1755.html
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sábado, 24 de abril de 2010

ENSAIO TEÓRICO DA SENSAÇÃO NOS ESPÍRITOS


257. O corpo é o instrumento da dor. Se não é a causa primária desta é, pelo menos,
a causa imediata. A alma tem a percepção da dor: essa percepção é o efeito. A lembrança
que da dor a alma conserva pode ser muito penosa, mas não pode ter ação física. De fato,
nem o frio, nem o calor são capazes de desorganizar os tecidos da alma, que não é
suscetível de congelar-se, nem de queimar-se. Não vemos todos os dias a recordação ou a
apreensão de um mal físico produzirem o efeito desse mal, como se real fora? Não as
vemos até causar a morte? Toda gente sabe que aqueles a quem se amputou um membro
costumam sentir dor no membro que lhes falta. Certo que aí não está a sede, ou, sequer, o
ponto de partida da dor. O que há, apenas, é que o cérebro guardou desta a impressão.
Lícito, portanto, será admitir-se que coisa análoga ocorra nos sofrimentos do Espírito após a
morte. Um estudo aprofundado do perispírito, que tão importante papel desempenha em
todos os fenômenos espíritas; nas aparições vaporosas ou tangíveis; no estado em que o
Espírito vem a encontrar-se por ocasião da morte; na idéia, que tão freqüentemente
manifesta, de que ainda está vivo; nas situações tão comoventes que nos revelam os dos
suicidas, dos supliciados, dos que se deixaram absorver pelos gozos materiais; e inúmeros
outros fatos, muita luz lançaram sobre esta questão, dando lugar a explicações que
passamos a resumir.
O perispírito é o laço que à matéria do corpo prende o Espírito, que o tira do meio
ambiente, do fluido universal. Participa ao mesmo tempo da eletricidade, do fluido
magnético e, até certo ponto, da matéria inerte. Poder-se-ia dizer que é a quintessência da
matéria. É o princípio da vida orgânica, porém, não o da vida intelectual, que reside no
Espírito. É, além disso, o agente das sensações exteriores. No corpo, os órgãos, servindolhes
de condutos, localizam essas sensações. Destruído o corpo, elas se tornam gerais. Daí o
Espírito não dizer que sofre mais da cabeça do que dos pés, ou vice-versa.
Não se confundam, porém, as sensações do perispírito, que se tornou independente, com as
do corpo. Estas últimas só por termo de comparação as podemos tomar e não por analogia.
Liberto do corpo, o Espírito pode sofrer, mas esse sofrimento não é corporal, embora não
seja exclusivamente moral, como o remorso, pois que ele se queixa de frio e calor. Também
não sofre mais no inverno do que no verão: temo-los visto atravessar chamas, sem
experimentarem qualquer dor. Nenhuma impressão lhes causa, conseguintemente, a
temperatura. A dor que sentem não é, pois, uma dor física propriamente dita: é um vago
sentimento íntimo, que o próprio Espírito nem sempre compreende bem, precisamente
porque a dor não se acha localizada e porque não a produzem agentes exteriores; é mais
uma reminiscência do que uma realidade, reminiscência, porém, igualmente penosa.
Algumas vezes, entretanto, há mais do que isso, como vamos ver.
Ensina-nos a experiência que, por ocasião da morte, o perispírito se desprende mais
ou menos lentamente do corpo; que, durante os primeiros minutos depois da desencarnação,
o Espírito não encontra explicação para a situação em que se acha. Crê não estar morto, por
isso que se sente vivo; vê a um lado o corpo, sabe que lhe pertence, mas não compreende
que esteja separado dele. Essa situação dura enquanto haja qualquer ligação entre o corpo e
o perispírito. Disse-nos, certa vez, um suicida: “Não, não estou morto.” E acrescentava: No
entanto, sinto os vermes a me roerem. Ora, indubitavelmente, os vermes não lhe roíam o
perispírito e ainda menos o Espírito; roíam-lhe apenas o corpo. Como, porém, não era
completa a separação do corpo e do perispírito, uma espécie de repercussão moral se
produzia, transmitindo ao Espírito o que estava ocorrendo no corpo. Repercussão talvez não
seja o termo próprio, porque pode induzir à suposição de um efeito muito material. Era
antes a visão do que se passava com o corpo, ao qual ainda o conservava ligado o
perispírito, o que lhe causava a ilusão, que ele tomava por realidade. Assim, pois não
haveria no caso uma reminiscência, porquanto ele não fora, em vida,
ruído pelos vermes: havia o sentimento de um fato da atualidade. Isto mostra que deduções
se podem tirar dos fatos, quando atentamente observados.
Durante a vida, o corpo recebe impressões exteriores e as transmite ao Espírito por
intermédio do perispírito, que constitui, provavelmente, o que se chama fluido nervoso.
Uma vez morto, o corpo nada mais sente, por já não haver nele Espírito, nem perispírito.
Este, desprendido do corpo, experimenta a sensação, porém, como já não lhe chega por um
conduto limitado, ela se lhe torna geral. Ora, não sendo o perispírito, realmente, mais do
que simples agente de transmissão, pois que no Espírito é que está a consciência, lógico
será deduzir-se que, se pudesse existir perispírito sem Espírito, aquele nada sentiria,
exatamente como um corpo que morreu. Do mesmo modo, se o Espírito não tivesse
perispírito, seria inacessível a toda e qualquer sensação dolorosa. É o que se dá com os
Espíritos completamente purificados. Sabemos que quanto mais eles se purificam, tanto
mais etérea se torna a essência do perispírito, donde se segue que a influência material
diminui à medida que o Espírito progride, isto é, à medida que o próprio perispírito se torna
menos grosseiro.
Mas, dir-se-á, desde que pelo perispírito é que as sensações agradáveis, da mesma
forma que as desagradáveis, se transmitem ao Espírito, sendo o Espírito puro inacessível a
umas, deve sê-lo igualmente às outras. Assim é, de fato, com relação às que provêm
unicamente da influência da matéria que conhecemos. O som dos nossos instrumentos, o
perfume das nossas flores nenhuma impressão lhe causam. Entretanto, ele experimenta
sensações íntimas, de um encanto indefinível, das quais idéia alguma podemos formar,
porque, a esse respeito, somos quais cegos de nascença diante a luz. Sabemos que isso é
real; mas, por que meio se produz? Até lá não vai a nossa ciência. Sabemos que no Espírito
há percepção, sensação, audição, visão; que essas faculdades são atributos do ser todo e
não, como no homem, de uma parte apenas do ser; mas, de que modo ele as tem? Ignoramo-lo. Os próprios Espíritos nada nos podem informar sobre isso, por inadequada a nossa
linguagem a exprimir idéias que não possuímos, precisamente como o é, por falta de termos
próprios, a dos selvagens, para traduzir idéias referentes às nossas artes, ciências e doutrinas
filosóficas.
Dizendo que os Espíritos são inacessíveis às impressões da matéria que
conhecemos, referimo-nos aos Espíritos muito elevados, cujo envoltório etéreo não
encontra analogia neste mundo. Outro tanto não acontece com os de perispírito mais denso,
os quais percebem os nossos sons e odores, não, porém, apenas por uma parte limitada de
suas individualidades, conforme lhes sucedia quando vivos. Pode-se dizer que, neles, as
vibrações moleculares se fazem sentir em todo o ser e lhes chegam assim ao sensorium
commune, que é o próprio Espírito, embora de modo diverso e talvez, também, dando uma
impressão diferente, o que modifica a percepção. Eles ouvem o som da nossa voz,
entretanto nos compreendem sem o auxílio da palavra, somente pela transmissão do
pensamento. Em apoio do que dizemos há o fato de que essa penetração é tanto mais fácil,
quanto mais desmaterializado está o Espírito. Pelo que concerne à vista, essa, para o
Espírito, independe da luz, qual a temos. A faculdade de ver é um atributo essencial da
alma, para quem a obscuridade não existe. É, contudo, mais extensa, mais penetrante nas
mais purificadas. A alma, ou o Espírito, tem, pois, em si mesma, a faculdade de todas as
percepções. Estas, na vida corpórea, se obliteram pela grosseria dos órgãos do corpo; na
vida extracorpórea, se vão desanuviando, à proporção que o invólucro semi-material se
eteriza.
Haurido do meio ambiente, esse invólucro varia de acordo com a natureza dos
mundos. Ao passarem de um mundo a outro, os Espíritos mudam de envoltório, como nós
mudamos de roupa, quando passamos do inverno ao verão, ou do pólo ao equador. Quando
vêm visitar-nos, os mais elevados se revestem do perispírito terrestre e então suas
percepções se produzem como no comum dos Espíritos. Todos, porém, assim os inferiores como os superiores, não ouvem, nem sentem, senão o que queiram ouvir ou sentir. Não possuindo órgãos sensitivos, eles podem, livremente, tornar ativas ou nulas suas percepções. Uma só coisa são obrigados a ouvir - os conselhos dos Espíritos bons. A vista, essa é sempre ativa; mas, eles podem fazer-se invisíveis uns aos outros. Conforme a categoria que ocupem, podem ocultar-se dos que lhes são inferiores, porém não dos que lhes são superiores. Nos primeiros instantes que se seguem à morte, a visão do Espírito é sempre turbada e confusa. Aclara-se, à medida que
ele se desprende, e pode alcançar a nitidez que tinha durante a vida terrena,
independentemente da possibilidade de penetrar através dos corpos que nos são opacos.
Quanto à sua extensão através do espaço indefinito, do futuro e do passado, depende do
grau de pureza e de elevação do Espírito.
Objetarão, talvez: toda esta teoria nada tem de tranqüilizadora. Pensávamos que,
uma vez livres do nosso grosseiro envoltório, instrumento das nossas dores, não mais
sofreríamos e eis nos informais de que ainda sofreremos. Desta ou daquela forma, será
sempre sofrimento. Ah! sim, pode dar-se que continuemos a sofrer, e muito, e por longo
tempo, mas também que deixemos de sofrer, até mesmo desde o instante em que se nos
acabe a vida corporal.
Os sofrimentos deste mundo independem, algumas vezes, de nós; muito mais vezes,
contudo, são devidos à nossa vontade. Remonte cada um à origem deles e verá que a maior
parte de tais sofrimentos são efeitos de causas que lhe teria sido possível evitar. Quantos
males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição, numa
palavra: às suas paixões? Aquele que sempre vivesse com sobriedade, que de nada
abusasse, que fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, a muitas tribulações
se forraria. O mesmo se dá com o Espírito. Os sofrimentos por que passa são sempre a
conseqüência da maneira por que viveu na Terra. Certo já não sofrerá mais de gota, nem de
reumatismo; no entanto, experimentará outros sofrimentos que nada ficam a dever àqueles. Vimos que seu sofrer resulta dos laços que ainda o prendem à matéria; que quanto mais livre
estiver da influência desta, ou, por outra, quanto mais desmaterializado se achar, menos
dolorosas sensações experimentará. Ora, está nas suas mãos libertar-se de tal influência
desde a vida atual. Ele tem o livre-arbítrio, tem, por conseguinte, a faculdade de escolha
entre o fazer e o não fazer. Dome suas paixões animais; não alimente ódio, nem inveja, nem
ciúme, nem orgulho; não se deixe dominar pelo egoísmo; purifique-se, nutrindo bons
sentimentos; pratique o bem; não ligue às coisas deste mundo importância que não
merecem; e, então, embora revestido do invólucro corporal, já estará depurado, já estará
liberto do jugo da matéria e, quando deixar esse invólucro, não mais lhe sofrerá a
influência. Nenhuma recordação dolorosa lhe advirá dos sofrimentos físicos que haja
padecido; nenhuma impressão desagradável eles deixarão, porque apenas terão atingido o
corpo e não a alma. Sentir-se-á feliz por se haver libertado deles e a paz da sua consciência
o isentará de qualquer sofrimento moral.
Interrogamos, aos milhares, Espíritos que na Terra pertenceram a todas as classes da
sociedade, ocuparam todas as posições sociais; estudamo-los em todos os períodos da vida
espírita, a partir do momento em que abandonaram o corpo; acompanhamo-los passo a
passo na vida de além-túmulo, para observar as mudanças que se operavam neles, nas suas
idéias, nos seus sentimentos e, sob esse aspecto, não foram os que aqui se contaram entre os
homens mais vulgares os que nos proporcionaram menos preciosos elementos de estudo.
Ora, notamos sempre que os sofrimentos guardavam relação com o proceder que eles
tiveram e cujas conseqüências experimentavam; que a outra vida é fonte de inefável ventura
para os que seguiram o bom caminho. Deduz-se daí que, aos que sofrem, isso acontece
porque o quiseram; que, portanto, só de si mesmos se devem queixar, quer no outro mundo,
quer neste.

Allan Kardec

O Livro dos Espíritos, ed. FEB, ed. 76


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quarta-feira, 21 de abril de 2010

EMANCIPAÇÃO ESPIRITUAL DO HOMEM


Cedido pelo amigo dalailam

http://tamoporai.blogspot.com


IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA - Colocando o problema da evolução humana em termos de imanência e transcendência, segundo a acepção moderna desses vocábulos, podemos compreender melhor a natureza transcendente do horizonte espiritual. Os quatro horizontes que o antecedem: o tribal, o agrícola, o civilizado e o profético, representam o período de imanência do processo evolutivo. Nesse período, de acordo com o "princípio da imanência", de Le Roy, toda a potencialidade espiritual do homem encontra-se em desenvolvimento, tudo o que nele é implícito transita para o explícito. A experiência da magia, dos mitos agrários e da mitologia civilizada, das religiões organizadas e da eclosão profética, nada mais é do que uma seqüência de fases do período imanente, em que o homem acorda em si mesmo as forças latentes da alma, preparando-se para a fase de transcendência que virá com o horizonte espiritual.
Esse é um dos motivos por que a Revelação Cristã se mostra mais poderosa e atuante que as anteriores. Já vimos que o horizonte espiritual aparece com Jesus, com ele se define. Vimos também que Israel representou, mais do que os outros países, o momento em que as forças desenvolvidas no período da imanência atingiram a sua culminância. Assim, o próprio desenvolvimento histórico explica e justifica as afirmações místicas, aparentemente dogmáticas, da supremacia espiritual de Israel e do seu papel de povo eleito. Para a mentalidade mística dos horizontes anteriores, a posição de Israel não poderia ser interpretada senão como uma determinação celeste. A própria alegoria da Aliança confirma isto. O pacto firmado entre Deus e seu povo é a simples divinização de um sistema agrário de compromissos humanos. Mas era através dessa alegoria que os antigos conseguiam entender e explicar uma realidade inexplicável, qual fosse a supremacia espiritual do povo hebraico e o seu dever indeclinável de liderança mundial.
A incompreensão do fato permanece ainda hoje, tanto no seio das religiões cristãos quanto no próprio judaísmo. A expectativa milenária do Messias, e a ambição do domínio universal e absoluto, das seitas cristãs provindas do judaísmo, nada mais são do que resíduos do período de imanência. A destinação messiânica de Israel não foi e não é encarada no seu sentido histórico, mas no seu antigo aspecto teológico. Daí a razão do povo eleito esperar ainda o cumprimento da promessa divina, e das seitas cristãs modernas, que se julgam herdeiras da mesma promessa, insistirem tão firmemente nos seus direitos de dominação e orientação exclusiva das consciências, para a salvação das almas.
O Espiritismo, doutrina livre, dinâmica, sem dogmas de fé, sem intenções exclusivas ou pretensões salvacionistas, corresponde precisamente à fase de esclarecimento do horizonte espiritual. Por isso é que ele se apresenta como desenvolvimento natural do Cristianismo, seqüência inevitável do processo histórico, enfrentando o problema da salvação em termos de evolução, e procurando explicar as alegorias do passado à luz da compreensão racional. Curioso notar-se que, nesse ponto, os adversários do Espiritismo o acusam de racionalismo sustentando a tese imanente, ou seja, a tese provinda do período de imanência, segundo a qual existem mistérios que a razão não alcança. Entre esses mistérios, figura o da destinação messiânica de Israel, que, como vimos, não era explicável no período anterior, mas hoje é perfeitamente compreensível.
No período de imanência, o homem não havia atingido a emancipação espiritual que lhe permitiria encarar os grandes problemas da sua própria destinação. Possuindo, entretanto, o sentimento intuitivo desses problemas, procurava racionalizá-los através de símbolos, de alegorias. No período de transcendência, o homem, já espiritualmente desenvolvido, possui os elementos necessários para enfrentar esses problemas e resolvê-los. Isso não quer dizer, entretanto, que o Espiritismo se considere, ou que os espíritas se considerem como novos detentores da verdade absoluta. Pelo contrário: O Espiritismo proclama a existência de problemas que são ainda insolúveis, como o da própria natureza de Deus. Insolúveis, porém, no momento presente, uma vez que o processo evolutivo levará o homem, progressivamente, a desvendar os novos mistérios que lhe forem sendo propostos pela própria evolução.
As reservas modernas quanto ao racionalismo são explicáveis, diante da experiência que conduziu os homens ao ceticismo, à descrença, ao materialismo, e consequentemente a uma posição incômoda, de negativismo explícito ou implícito dos valores da vida. Mas o racionalismo espirita representa precisamente o reajuste da posição racionalista. Porque a razão aplicada ao julgamento do passado, em função das conquistas ainda recentes do presente, provoca desequilíbrio do espirito, quando se pretende estabelecer o absolutismo racional. No Espiritismo, a razão é apresentada como uma função do espirito, um dos seus instrumentos de ação, e não como o próprio espirito. O absolutismo da razão não existe, embora a razão se apresente como instrumento indispensável para o esclarecimento espiritual.
Por outro lado, é necessário considerar que a razão foi a escada de que o homem se serviu, para superar os horizontes anteriores, libertando-se do domínio das forças naturais ou instintivas. A razão é, por assim dizer, a alavanca espiritual que elevou o homem do período de imanência para o de transcendência, permitindo-lhe julgar-se a si mesmo e delinear as perspectivas da sua própria libertação. O Espiritismo, como doutrina que corresponde exatamente às aspirações e as exigências do horizonte espiritual, não pode abrir mão da razão, nem mesmo em favor da intuição, que pertence a um período futuro do desenvolvimento humano.


DESENVOLVIMENTO DA RAZÃO - O horizonte profético assinalou a fase culminante de desenvolvimento da razão. Já tivemos ocasião de estudar os motivos dessa ocorrência, no vasto período histórico que vai do IX ao III século antes de Cristo, segundo a teoria de John Murphy, Resta-nos apreciar a maneira por que a razão vai progressivamente impondo os seus direitos, até conquistar a supremacia necessária, para libertar o espírito humano dos liames terríveis do passado.
Podemos observar com segurança o vigoroso surto da razão no horizonte profético, a começar da própria agitação profética na Palestina. Os conquistadores de Canaã carregavam no espirito a herança das civilizações mesopotâmica e egípcia. Os germes da razão estavam bem desenvolvidos naquelas mentes inquietas, que procuravam construir um novo mundo para si mesmas e anunciar aos demais povos o advento de uma nova ordem. Mas foram os profetas de Israel os corifeus desse movimento renovador, quer levantando sua voz contra o apego aos velhos hábitos, quer anunciando com insistência a aproximação dos novos tempos.
Os debates teológicos de Israel aparecem como uma preparação da efervescência medieval. Os profetas agitam a pasmaceira teológica do povo eleito, propondo questões que perturbam a própria ordem social. Ao mesmo tempo, na Grécia, a filosofia se desprende da sua matriz órfica, supera o pensamento místico do orfismo tradicional, e ensaia os primeiros passos da perquirição racional. Na própria China estagnada surge a inquietação provocada pela introdução do Budismo e pelo aparecimento do Confucionismo. Na Índia védica, submetida ao jugo das tradições, a renovação budista mistura-se às influências procedentes do pensamento grego, cujo poder de irradiação não conhece barreiras, no Ocidente ou no Oriente. No mundo romano, a infiltração grega submetia as tradições do Império e o politeísmo dominante ao julgamento progressivo, que a contribuição judeu-cristã iria acelerar de maneira decisiva.
O Cristianismo aparece como verdadeiro remate desse vasto processo. Jesus não se limita a condenar o apego ao ritualismo religioso no mundo judaico. Ele proclama a natureza espiritual de Deus, e consequentemente a do homem, filho de Deus. Ensina a universalidade do espírito, rompendo assim as barreiras de todos os preconceitos tribais, que dividiam a humanidade em grupos raciais ou religiosos. Mostra que o samaritano podia ser melhor que um príncipe da igreja judaica, e adverte à mulher samaritana que Deus devia ser adorado, não através de fórmulas exteriores em locais considerados sagrados, mas "em espirito e verdade".
Quando observamos o fenômeno do aparecimento e da propagação do Cristianismo, primeiramente na Palestina, e depois no mundo, verificamos que se tratava de uma verdadeira revolução. Mas a característica dessa revolução é precisamente o apelo à razão. O Cristianismo exigia das criaturas o uso desse poder misterioso do raciocínio, que as fazia senhoras de si mesmas, responsáveis pelos seus atos. Contra a autoridade das Escrituras e dos Rabinos, bem como da própria tradição, Jesus proclamava a soberania da consciência. Limpar o vaso por dentro, e não apenas por fora; servir-se do Sábado, em vez de escravizar-se a ele; orar conscientemente, sabendo que Deus, sendo Pai, não dá pedra a quem lhe pede pão, nem cobra a quem lhe pede peixe.
Os homens ainda não estão preparados para compreender todos os princípios dessa revolução. Continuarão apegados, por muito tempo, aos velhos moldes autoritários, subjugados pelos antigos preceitos. Mas o fermento está lançado na medida de farinha, e inevitavelmente a fará levedar. Os próprios apóstolos não assimilarão suficientemente as lições do Mestre. Procurarão ajustar o Cristianismo aos velhos moldes judaicos, retê-lo nas sinagogas, prendê-la ao templo de Jerusalém. Pedro, o velho pescador, não admitirá cristão que não se submeta a ser circuncidado. Mas Jesus conhece um homem que amadureceu o suficiente para fazer prevalecer a razão sobre o costume, o uso, a tradição. Esse homem é Paulo de Tarso, que promoverá no Cristianismo nascente o movimento vivo de repulsa ao predomínio do passado.
A reforma grega do Orfismo pelo Pitagorismo, a reforma indiana do Hinduísmo pelo Budismo, a reforma chinesa do Taoísmo pelo Confucionismo, e a reforma síria do Judaísmo pelo Cristianismo, eis os grandes eventos históricos que assinalam o advento mundial, no horizonte profético, da era da razão. Pitágoras é o primeiro a ensaiar, na Grécia do século sexto, e no mundo inteiro, a união do pensamento místico ao racional. E a partir dos pitagóricos, o grande drama da evolução humana, durante milênios, se desenvolverá nesse plano: a luta pela racionalização da fé.
A crença pela crença, a fé pela fé, a obrigação e a necessidade de aceitar a tradição, como verdade absoluta, acabada e perfeita, são característicos dos horizontes primitivos, das fases de predomínio do instinto e do sentimento. Na proporção em que a razão se desenvolve, em que o homem aprende a pensar e a julgar, a fé cega, tradicional. Já não pode satisfazê-lo. A fórmula comodista: "Creio porque creio", exigirá um substituto dinâmico e fecundo: "Creio porque sei".
O horizonte profético se encerra com o predomínio da razão.
Ao contrário do que se costuma dizer, a razão não aparece como exclusivamente grega, não obstante a contribuição da Grécia seja a mais decisiva para o seu desenvolvimento. Encontramos, como já vimos acima, o florescimento da razão ao longo de todo o horizonte profético, prenunciando a supremacia mundial que ela deverá assumir, com o advento do horizonte espiritual. Mas haverá ainda uma grande fase histórica de reação, de luta profunda e morosa, entre a razão e a fé, embora aquela tenha de sair triunfante.


O DRAMA MEDIEVAL - A Idade Média é a fase dramática do desenvolvimento da razão. A tentativa pitagórica renova-se nessse vasto e sombrio período da história européia, mas em condições completamente diversas. O Cristianismo nascente recebera, desde a Palestina, um duplo impulso de racionalização: de um lado, a insistência do Cristo em libertar os homens do dogmatismo fideísta dos judeus; de outro, a influência do pensamento grego, bem patente nos próprios evangelhos. "Religião do livro", como mais tarde a chamariam os muçulmanos, penetrou essa nova religião no Império Romano em meio à efervescência da decadência, incentivando e acalorando os debates em torno dos problemas da fé. Mas no próprio Cristianismo a contradição dialética se acentua de maneira ameaçadora. Com o correr do tempo, a fé conseguiu superar sua antagonista, a razão, e submetê-la ao seu império. Nada exprime melhor esse fato do que a fórmula medieval: "A filosofia é serva da teologia.".
Os que ainda hoje acusam o Cristianismo de religião reacionária e obscurantista, em virtude do medievalismo e suas conseqüências, esquecem-se de que foi ele a única religião capaz de incentivar o desenvolvimento da razão, e até mesmo de preservar a herança cultural greco-romana através do período bárbaro. Esquecem-se de que próximo a Nazaré existia a Decápolis grega, e que o próprio nome da nova religião derivou de uma palavra grega. Esquecem-se ainda dos fatos históricos fundamentais do desenvolvimento do Cristianismo na Europa, entre os quais devemos assinalar a aproximação constante com o pensamento grego, o interesse pelas suas contribuições filosóficas, a tentativa de "pensar o evangelho através da lógica grega", e até mesmo a de platonizar e aristotelizar os fundamentos da nova religião.
A reação do fideísmo, entretanto, quase fez recuar o ímpeto da razão. O passado mítico e místico da humanidade pesou fundamente na balança. O próprio Cristo foi transformado em novo mito, e suas expressões alegóricas, empregadas sempre num sentido racional, esclarecedor, converteram-se em dogmas de fé. "O cordeiro que tira o pecado do mundo", imagem explicativa, referente à crença judaica na eficácia mágica do sacrifício de animais; "o resgate dos pecados pelo sangue", alegoria ligada à antiga superstição da era agrária, de purificação pela efusão de sangue; "a transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue do Cristo", idéia mágica, de sentido alegórico, proveniente dos antigos "Mistérios" das religiões orientais; e assim tantas outras, adquiriram a força de preceitos literais, de ordenações divinas. Ao mesmo tempo, as formas do culto exterior, das religiões pagãs e judaicas, e as próprias festas do paganismo, foram adaptadas à nova religião. O processo de sincretismo religiosos, hoje tão bem conhecido e estudado pelos sociólogos, transformou o Cristianismo em novo domínio do mito e da mística.Apesar de todo esse gigantesco esforço de asfixia da razão, esta, entretanto, continuou a se desenvolver. Submetida ao império da fé, constrangida a servir aos dogmas, em vez de criticá-los, transformada em "serva da teologia", nem por isso a razão pôde ser esmagada. Porque, mesmo para servir ao dogmatismo, ela conseguia agitar e inquietar os espíritos. As heresias surgiram do chão "como cogumelos", segundo a expressão de Tertuliano, e mesmo depois que o principio de usucapião, do direito romano, foi empregado raciionalmente contra a razão, em defesa do fideísmo asfixiante, a razão, continuou a abrir as suas brechas na muralha dogmática. O próprio Tertuliano acabou como herege, e foram muitos os padres e doutores que, embriagados pelo vinho grego da dialética, resvalaram para o abismo das condenações.
A famosa Querela dos Universais, provocada pelo desafio de Porfírio, discípulo de Plotino, marcará a fase decisiva do desenvolvimento da razão, no mais agudo período da consolidação da dogmática medieval. Figuras brilhantes de pensadores cristãos como estrelas perdidas no céu escuro do medievalismo, assinalarão o roteiro da razão, como um traço de giz no quadro negro da época. A partir dos hereges dos quatro primeiros séculos, sufocados pela violência ortodoxa dos que se julgavam herdeiros exclusivos da era apostólica, podemos gizar no quadro uma linha que passa por Agostinho, no século V: por Erígena e Alcuíno, no século VIII; pelo dialético Beranger de Tours, do século IX, que negava a Eucaristia; por Abelardo, com seu "Sic et Non"; pelo trabalho dos "mestre de sentença", entre os quais se destaca Pedro Lombardo; para, afinal chegamos a Tomás de Aquino, que representa a codificação das contradições medievais, com sua "Suma Teológica."
O drama da razão na Idade Média empolga pelos seus lances heróicos, mas ao mesmo tempo assusta, pelo trágico de seus episódios cruéis. Abelardo é uma das figura mais representativas, senão a própria encarnação desse drama. Em pleno século XI, aceitava a supremacia da fé, mas chegou a tentar uma explicação racional do dogma da Trindade, caindo na condenação de heresia. Duas vezes foi condenado pelos Concílios. E para que não faltasse, no simbolismo da sua vida, o colorido das paixões humanas da época, temos o seu romance com Heloísa e o desfecho cruel a que é levado. Dilthey considerou a Idade Média como um caldeirão, em que ferviam as idéias, misturando, num gigantesco processo de fusão, as contribuições do pensamento grego-romano com os princípios judeu-cristãos.
Esse imenso "cozido", que teve de ser preparado através de um milênio, só estaria completo nos albores do século XIV, logo após a codificação da "Suma Teológica".
A luta entre a razão e a fé encontra, portanto, o seu epílogo, na Renascença. Embora tenhamos de reconhecer a sua continuidade, mesmo em nossos dias, a verdade é que ela agora se processa em plano secundário, como simples resíduo natural de épocas superadas. Descartes foi o espadachim que deu o golpe final nesse duelo de milênios. Inspirado pelo Espírito da Verdade, segundo a sua própria expressão, o filósofo do "cógito" libertou a filosofia da servidão medieval e preparou o terreno para o advento do Espiritismo. Mais tarde, Kardec poderia exclamar como vemos no pórtico de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que "Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as etapas da humanidade".
O que hoje se condena como racionalismo não é propriamente a razão, mas o absolutismo racional. A luta filosófica que se travou e ainda se trava no nosso tempo já não se refere mais ao problema antigo e medieval de razão e fé, mas às questões modernas, tipicamente metodológicas, de razão e intuição. É uma batalha que se trava no campo da teoria do conhecimento, e não mais no campo da superstição e do dogmatismo fideísta. Para o Espiritismo, essa batalha está superada.
A razão é apenas o instrumento de que o Espírito, o Ser, em sua manifestação temporal se serve para dominar o mundo. A intuição é o processo direto de conhecimento, de que o Espírito dispõe em seu plano próprio de ação - o espiritual - e que desenvolverá no plano material, na proporção em que o dominar pela razão. Mas a importância da razão, no processo evolutivo do homem, como forma de libertação espiritual, jamais poderá ser negada. Ao estudar o Renascimento, compreendemos o papel do racionalismo, na emancipação espiritual do homem, e o motivo por que o Espiritismo não pode abdicar de suas características racionalistas, para realizar a sua missão emancipadora total.


A MATURIDADE ESPIRITUAL - O Renascimento assinala o momento histórico de emancipação espiritual do homem. O processo de desenvolvimento da razão aparece completo, nesse homem novo que, com Descartes, refuta o dogmatismo medieval e proclama os direitos do pensamento. Não importa que o fenômeno cartesiano pertença ao século dezessete quando os albores da nova era já haviam surgido no catorze, no Quatrocento italiano. O processo, como vimos anteriormente vinha de muito antes. Mas assim como Abelardo encarna o drama medieval em todas as suas cores, Descartes é quem encarna a epopéia do Renascimento, a vitória da razão sobre o fideísmo medieval. Nele e através dele é que a razão triunfa para sempre, marcando os rumos de um novo mundo, para a humanidade renovada.
Mas o episódio histórico que assinalará, como verdadeiro marco no tempo, e momento de emancipação espiritual do homem, somente ocorrerá em fins do século dezoito, na efervescência da revolução Francesa. O estabelecimento do Culto da Razão, por Pierre Gaspar Chaumette, com a entronização da bailarina Candeille, da Ópera de Paris, na presença de Robespierre, em 1793, na Catedral de Notre Dame, é um episódio que representa verdadeira invasão do processo histórico pelo mito. Aliás, toda a Revolução Francesa apresenta esse curioso aspecto de uma revivescência mítica em pleno domínio da história. Foi um movimento histórico que se desenrolou no plano da alegoria. Cada uma das suas fases, e ela inteira, no seu conjunto, aparecem como símbolos. Nesse vasto enredo alegórico, o Culto a Razão é a simbologia específica, o episódio lendário, que marca a vitória do homem sobre a lenda e o mito.
Chaumette foi guilhotinado em 1794. Pagou caro e sem demora a ofensa cometida contra os poderes celestes, ao substituir em Notre Dame o culto da Mater Divina pelo da Razão Humana. Assim entenderam, e ainda hoje o entendem, os supersticiosos adversários do progresso espiritual do homem. Mas o sentido do episódio não estava na heresia. Chaumette não era um iconoclasta, nem um profanador de templos. Era apenas um intérprete do momento histórico em que a Razão Humana proclamava a sua libertação da Mater Divina, ou seja, em que o homem se libertava da Fé Dogmática, para usar o raciocínio, duramente conquistado através dos milênios.
Fácil compreender-se o horror que a audácia revolucionária provocou no mundo. A bailarina Candeille foi conduzida à Catedral de Notre Dame sobre um andor, vestida de azul, com barrete frígio na fronte, precedida de um cortejo de moças vestidas de branco, ostentando faixas tricolores. A convenção decidira substituir a religião tradicional por essa religião racionalista, e Robespierre presidiu a cerimônia. Uma estátua do Ateísmo foi queimada durante a festa que se seguiu. A religião de Chaumette era espiritualista, rejeitava o ateísmo e o materialismo. Mas quem poderia entender esse espiritualismo que não se submetia aos dogmas e aos sacramentos? Até hoje, o episódio do Culto da Razão causa arrepios aos próprios historiadores, que passam rapidamente sobre ele. É qualquer coisa de monstruuoso, que deve ser esquecido.
Durante dois meses, Novembro e Dezembro de 1793, o Culto da razão se estendeu pela França. As igrejas foram desprovidas de seus aparatos tradicionais e a Deusa Razão foi entronizada em cerimônias festivas. Carlyle, referindo-se a cerimônia de Notre Dame, exclama indignado que a bailarina Candeille era levada em procissão, e acrescenta: "escoltada por música de sopro, barretes frígios, e pela loucura do mundo". Realmente tudo parecia loucura, naquele momento irreal. A tradição se esboroava. Os ídolos caíam. Bispos e padres renunciavam. Carlyle acentua que surgiram de todos os lados: "curas com suas recém-desposadas freiras". E uma bailarina da Ópera era transformada em deusa, embora apenas de maneira simbólica.
Mas toda essa loucura nada mais era que a reação do espírito contra a asfixia das tradições. Qual o momento de libertação que não traz consigo esses arroubos? Passada, porém, as emoções do início, o coração se acalma e a razão restabelece as suas leis. Por outro lado, a "loucura do mundo", a que Carlyle se refere, pode ser historicamente identificada com a própria razão, pois vemo-la sempre denunciada pelos tradicionalistas, pelos conservadores renitentes, nos momentos cruciais da evolução humana. Os homens velhos, como as castas e os povos envelhecidos - ensina Ingenieros - vivem esclerosados em suas armaduras ideológicas e não podem compreender, senão como loucura, as verdadeiras revoluções sociais, que afetam os interesses estabelecidos e transformam as idéias dominantes.
A vitória da razão, na sua luta milenar contra o obscurantismo fideísta, não podia deixar de parecer um momento de loucura. Porque, desenvolvida através de um laborioso processo de acúmulo de experiências, de geração a geração, de civilização a civilização, o seu crescimento se assemelha ao das plantas que rompem o calçamento das ruas, para afirmar o poder da vida sobre as construções artificiais. Sabemos hoje, pelo aprofundamento que o relativismo crítico realizou na doutrina das categorias, de Kant, que a razão é o sistema dessas categorias vitais, forjadas no processo da experiência sempre renovada. Assim como a planta, rompendo o calçamento, afirma as exigências vitais da natureza, em toda a parte, assim também a razão, violentando as estruturas das velhas convenções, afirma as exigências vitais da consciência humana. A primeira dessas exigências é a liberdade, fundamento e essência do homem, que asfixiada durante um milênio no caldeirão medieval, explodiu com o fragar de uma detonação atômica, no período da Revolução Francesa.
Devemos ainda lembrar que o episódio do Culto da Razão tem o seu lugar no centro de uma linha de acontecimentos históricos. Não foi um caso isolado. Mesmo porque, na história, não existem casos dessa espécie. Já tivemos ocasião de lembrar o antecedente pitagórico da luta medieval entre a razão e a fé. Jérome Carcopino estabeleceu as ligações entre o pitagorismo e o cristianismo primitivo, nos seus estudos sobre a conversão do mundo romano. No período medieval já traçamos a linha que assinala o desenvolvimento dessa luta. Basta que a retomemos agora em Descartes, para vermos a continuidade no mundo moderno. Mas o mais curioso é vermos como essa luta sugeriu, no pensamento francês, tão afeito à síntese, a idéia de uma religião racional, que teve também o seu lento desenvolvimento.
Sem procurarmos entrar em maiores indagações, acentuamos que Descartes fundava o seu racionalismo na inspiração do Espírito da Verdade. Aparente contradição, que mais tarde se esclarecerá. Logo a seguir temos o caso de Espinosa, que estabelece ao mesmo tempo a forma racional de uma interpretação panteísta do cosmos e lança as bases, segundo Huby, "do mais radical racionalismo escriturístico". Dessas tentativas, surgem muitas derivações e paralelismos, que parecem desembocar na Convenção. Clootz propõe que o Deus Único seja o povo, e a Deusa Razão, de Chaumette, levará na mão o cetro de Júpiter-Povo.
Fracassada a tentativa, revolucionária, e retomadas as igrejas, não tardará muito a aparecer a tentativa de Auguste Comte, de fundação da Religião da Humanidade. Nessa linha milenar se insere o racionalismo espírita, que surge com Kardec, em meados do século dezenove, como síntese definitiva de um grande processo histórico. O Espiritismo representa o triunfo decisivo da razão. Não sobre a fé, com a qual se estabelece o equilíbrio, mas sobre o dogmatismo fideísta, que em nome da última asfixiava a primeira.


J. Herculano Pires


imagem: geae.inf.br


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