domingo, 1 de novembro de 2009

A TÊNUE FRONTEIRA



Renato Costa


Ramos da Ciência surgidos no Século XX permitem novo entendimento quanto à fronteira entre a Inteligência e o Instinto

O tema Inteligência e Instinto é desenvolvido na Codifi­cação, da Questão 71 à Questão 75 de O Livro dos Espíritos e, com mais detalhe, do item 11 ao item 19 do Capítulo III de A Gênese. Por falta de espaço em um artigo desta natureza, não transcreveremos as questões, as respostas dos Espíritos e o raciocínio do Codificador, nem teceremos comen­tários a eles. Uma clara compreensão de nosso trabalho, no entanto, não prescinde de tal estudo, motivo pelo qual incenti­vamos nosso amável leitor que não as deixe de estudar antes de prosseguir.

Como dissemos em nosso artigo de maio/2003, publi­cado nesta revista, o quadro atual de co­nhecimento no estudo do comportamento animal é fruto da maturação de duas abordagens científicas que surgiram nas décadas de 20 e 30 do século XX, quais sejam, respectiva­mente, a Psicologia Associativa e a Etologia. A primeira teve início nos EUA, com a participação de psicólogos e com enfoque nos comportamentos de exem­plares de animais testados em experi­mentos de laboratório, associando tais comportamentos a aprendizado. A se­gunda, na Europa, com a participação de zoólogos e com enfoque nos comporta­mentos espécie-específicos de exem­plares observados em seu habitat natural, associando tais comportamentos a instintos inatos ou herdados genetica­mente. Durante um certo tempo houve acirrado debate entre os estudiosos partidários das duas abordagens, debate esse que ficou conhecido em inglês como o "the nature x nurture controversy" (a controvérsia natureza x criação). Hoje em dia, no entanto, prevalece a noção de que o comportamento animal deva ser visto sempre segundo seus dois componentes, o instintivo e o aprendido, que aparecem, um e outro, em maior ou menor grau, conforme a circunstância que se apresenta.

Antes de prosseguirmos em nosso estudo, convém notarmos que nenhuma das duas abordagens ao estudo do comportamento animal que deram origem ao atual estágio de conhecimento cientí­fico havia ainda surgido por ocasião da Codificação. Em conseqüência desse fato, tudo o que vamos falar sobre comportamento animal daqui em diante são elementos de observação de que Allan Kardec não dispunha quando escreveu na Codificação sobre inteli­gência e instinto.

"Todo ato maquinal é instintivo... Ao ato instintivo falta o caráter do ato inteligente...” (GE lII, 12).

Os termos comportamento instin­tivo ou comportamento inato são usados para designar os comportamentos que os etologistas entendem como herdados e controlados geneticamente, o que nós, espíritas, entenderíamos como patri­mônio da alma. É caracterizado um comportamento instintivo quando animais de uma mesma espécie seguem todos a mesma seqüência de ações quando sob as mesmas condições ambientais. Comportamentos instintivos podem ser de três tipos: taxias, que são movimentos automáticos de um organismo, aproxi­mando-se de um estímulo ou se afas­tando dele, como ocorre com os cupins em relação à luz; reflexos, que são respostas involuntárias de um organismo frente a um estímulo, como o retrair da mão de um animal quando ela toca um objeto quente, e padrões Fixos de ação (PFA) ou ins­tintos propriamente ditos, que são padrões complexos de compor­tamento, porém, geral­mente, inflexíveis e que envolvem todo o corpo do animal, podendo necessitar de um estímulo externo para serem dispa­rados. Exemplos simples são casais de aves alimentando bocas abertas (não necessariamente filhotes), reação de medo a predadores e a resposta de fuga ou ataque de um animal frente à agressão. Um exemplo mais complexo são os mi­lhares de movimentos que uma aranha repete quase sem alteração cada vez que tece suas teias de aparência sempre igual.

O termo comportamento aprendido é usado para designar alterações no comportamento como resultado de ex­periências vividas. As modalidades existentes são as seguintes: estampagem, que é um comportamento que possui componente inato e aprendido e é adqui­rido em um período específico e limitado de tempo na vida do organismo. Patinhos recém-nascidos, por exemplo, identifi­carão como sua "mãe" (protetora) e se­melhante (outro indivíduo da espécie à qual pertencem) um objeto de razoável tamanho que se mova e emita sons, desde que este for a primeira coisa que vejam junto a si no momento em que nascem e por um breve período após. Daí em diante seguirão o objeto onde ele for. A estampagem persiste pela vida do indi­víduo. Esse comportamento se chama de estampagem porque equivale a uma estam­pa gravada para sempre no indivíduo. Somente espécies menos evoluídas estão sujeitas à estampagem; habituação, que é uma redução em uma resposta anteriormente apresentada quando nenhuma recompensa ou punição se segue. Se um barulho estranho for ou­vido por um cão de guarda ele entra em alerta. Se esse mesmo barulho voltar a ocorrer sistematicamente na mesma hora e nas mesmas circunstâncias, dentro de certo tempo o cão se habi­tuará ao barulho e não mais entrará em alerta devido a ele; condicionamento clássico, que consiste em associar uma resposta já existente a um estímulo novo ou substituto. É uma forma importante para alterar um Padrão Fixo de Ação (Instinto) de modo ao animal poder se adequar com mais precisão a circunstâncias ambientais. Se o dono de um cão soar um sino antes de servir a ração ao animal, este se condicionará a salivar toda vez que ouvir tocar um sino, pois terá condicionado a oferta de ração ao estímulo de ouvir o sino que, a princípio, nada tem a ver com alimentação; condi­cionamento instrumental ou aprendi­zado por tentativa e erro, que consiste em se modificar uma resposta preexis­tente a um estímulo ou criar novas respostas. Ocorre, por exemplo, quando o animal aprende quais comidas são saborosas e quais não são. Testes de laboratório comuns para avaliar a capacidade que um animal tem de aprender por ten­tativa e erro são labirintos que o animal deve percorrer para receber uma recom­pensa, usualmente uma comida de que gosta. Uma vez resolvido o labirinto o animal geralmente memoriza a solução e passa a ir direto até a meta, demons­trando que aprendeu uma seqüência lógica e visual, e aprendizado por "Insight" ou discriminação, que é um tipo de comportamento que, indubitavelmente, requer inteligência, pois o animal deve analisar a situação, examinar quais os elementos de que dispõe e criar uma solução inteiramente nova para atingir sua meta. Verifica-se quando, por exemplo, um chimpanzé faz uma pilha de engradados para usar como escada de modo a obter um prêmio em comida pendurado fora de seu alcance, sem nunca ter visto antes essa solução. Ou ainda, quando um corvo da Nova Caledônia dobra um pedaço de metal com seu bico para apanhar a co­mida no fundo de um tubo após ter observado um corvo maior ter se apos­sado do único pedaço curvado de metal que havia disponível e ter conseguido com o mesmo atender à mesma meta.

"A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos, premeditados, combinados, de acordo com a oportu­nidade das circunstâncias". (GE III, 12)

Agora que conhecemos os termos corretos para identificar os diversos tipos de comportamento animal é importante sabermos que o comportamento animal em cada circunstância pode ser um casa­mento de vários desses tipos, cada um deles participando em maior ou menor grau.

"Aliás, é freqüente o instinto e a inteli­gência se revelarem simultaneamente no mesmo ato. (GE III, 13)

Quando um castor constrói uma barragem, por exemplo, assume-se que a solução de construir a barragem seja um padrão fixo de ação ou instinto. Está na memória genética de sua espécie, se­gundo os cientistas, ou na memória aní­mica da espécie, segundo uma visão espírita, que a construção de barragens é uma forma de garantir a formação de um lago da profundidade conveniente para que ele possa construir sua moradia ao abrigo dos predadores e possa ter uma reserva de alimentos acessível durante o in­verno, quando a superfície do lago está congelada. Entretanto, a constatação de se o lago precisa ou não ser aprofundado e a forma como irá construir a barragem, se necessária, assim como a escolha do material de que se irá uti­lizar para tal, são todos comportamentos apren­didos, parte por tentativa e erro, quando já age sozinho na fase adulta, mas parte, certamente, sob orientação de sua mãe quando mais novo.


Um outro exemplo além do castor é o das aves que constroem ninhos, sempre se adaptando aos mate­riais encontrados nos locais para onde se mudam e às características desses locais. A maioria das interações possíveis em determinado ambiente é por demais complexa para que instintos fixos delas se incumbam. A participação do compor­tamento aprendido, tanto na forma de tentativa e erro como na forma de apren­dizado por "insight", é, portanto, muito importante para animais que se deslocam de um para outro ambiente.


Ao contrário dos instintos, que são consolidados na espécie e passados entre as gerações, os comportamentos apren­didos requerem, para sua fixação, a manu­tenção por longos períodos das circuns­tâncias que os permitiram ou provocaram seu aparecimento. É desse modo que comunidades de determinada espécie que migraram há séculos de uma para outra região, vão, aos poucos, constituindo uma nova espécie, com instintos modi­ficados em função da adaptação às novas condições. A modificação de instintos a partir de comportamento aprendido, após a consolidação desse último, sugere, para os cientistas, que houve uma mudança genética na espécie e, para nós, espíritas, que mais um aprendizado foi adicionado ao seu patrimônio anímico.


Como vemos, a fronteira que separa a inteligência do instinto é bastante tênue. Não só porque vários comportamentos que eram tidos como instintivos hoje são ditos inteligentes, como pelo fato, constatado pelos estudiosos, de que os comportamentos aprendidos por tenta­tiva e erro e por "insight", que requerem inteligência para ocorrer, podem, ao cabo de várias gerações, ser consolidados como instintos. O instinto, portanto, ou, pelo menos, a parte dele conquistada após a definição da individualidade, pode ser visto como uma espécie de inteli­gência fóssil enterrada nas profundas camadas da mente .



Comentários de Kardec*

A inteligência é uma faculdade especial, peculiar a algumas classes de seres orgânicos e que lhes dá, com o pensamento, a vontade de atuar, a consciência de que existem e de que constituem uma individualidade cada um, assim como os meios de estabelecerem relações com o mundo exterior e de proverem suas necessidades.

O instinto é uma inteligência rudimentar, que difere da inteli­gência propriamente dita, em que suas manifestações são quase sempre espontâneas, ao passo que as da inteligência resultam de uma combinação e de um ato deliberado. O instinto varia em suas manifestações, conforme as espécies e as suas necessidades. Nos seres que têm a consciência e a percepção das coisas exteriores, ele se alia à inteligência, isto é, à vontade e à liberdade.

*Constantes das questões 71 e 75 de O Livro dos Espíritos (80' edição da FEB, tradução de Guillon Ribeiro, Rio de Janeiro, agosto/98). Sugerimos ainda consulta ao livro A Gênese, conforme indicado pelo autor nesta matéria.



Bibliografia

Cardoso, Silvia Helena, PhD e Sabbatini, Renato M. E., PhD. Aprendendo quem é a sua Mãe - O comportamento de Imprin­ting. Obtido em março de 2003 de http:// www.epub.org.brlcm/n 14/experimento/ lorenz/index-lorenz_p.htmI.

Animal Behavior, Chapter 20. Obtido em março de 2003, de http://clab.cecil.cc.md.us/ facu lty/bio/ogy1 /behavior.htm.

Beaver. Canadian Wildlife Service Hinterland Who's Who. Obtido em junho de 2003, de http://www.cws-scf.ec.gc.ca
Costa, Renato. Os Diversos Caminhos da Evolução Anímica. In Revista Interna­cional do Espiritismo, Maio de 2003.

Domestic Animal Behavior. Obtido, em março de 2003, de http://asci.uvm.edu/ course/asci001 /behavior. html.

Swanson David, Dr. Behavior. Obtido, em março de 2003, de http://www.usd.edu/ bol/faculty/swa nson/orn ith/lec16. htm.

Innate Behavior. Obtido, em março de 2003, de http://users.rcn.com/ j kim ba 11. ma. ultra ne t/BilogyPa ges/1 / InnateBehavior.html.

Kardec, AIlan. O Livro dos Espíritos. FEB, 76 ed., 1995.

---' __ o A Gênese. FEB, 36 ed, 1995. Kohler's Work on Insight Behavior.

Animal Cognition Home Page. Obtido, em março de 2003, de http:// www.piegon.psy.tufts.edu/psych26/ hohler.htm.

Nota:O autor é engenheiro e expositor espírita no Rio de Janeiro


Revista Internacional de Espiritismo - Dezembro de 2003


endereço: http://www.panoramaespirita.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=7656
imagem: matorres.com.br



5 comentários:

Norma Villares disse...

Muito bom, sempre devemos estar atentos e esses conceitos, porque a liha que divide um do outro é tênue.

E como ainda somos MUITO INSTINTO fica dificil saber até onde é esse instinto e inicia a inteligência.

É claro que existe horas que, que o cmportamento instintivo fica muito evidente, a diferença é clara.

Mas, contudo, porém, todavia, risos...

O liame existente sempre é muito tênue.
Atualmente há tantos trabalhos sobre a inteligência que mudaram ops conceitos antigos sobre a mesma.

Gostei muito, aliás como sempre, risos.
Abraços com luzes e cores divinas

Kelly Kobor Dias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Kelly Kobor Dias disse...

è muito bom estudar, e um texto como esse cheio de citações e referências é melhor ainda....bjs

Jorge Nectan disse...

Olá, Norma!!!

É muito sutil mesmo.
Os seus comentários são sempre bem vindos, porque também é onde posso aprender mais um pouco.
Obraigado, mais uma vez por ter me visitado.

Além do pão de queijo com cafézinho, vai junto minhas vibrações de muito carinho !!!

Um beijo,

Uman

Jorge Nectan disse...

Oi, Kelly,

quanto mais estudamos mais ampliamos as perguntas, sem ter a certeza de obter as respostas...rs
Mas este é o caminho, né?
Um dia chegaremos lá!!!

Um beijo e uma excelente semana!!!
Beijo,

Uman

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